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O desafio de ser mulher

Seja no mercado de trabalho, na política ou nos relacionamentos afetivos, a luta das mulheres por espaço, respeito e representatividade é árdua e diária, mas também coletiva

TEXTO CAMILA MACIEL


Um estupro a cada 10 minutos e um feminicídio a cada 7 horas: esta é parte da realidade sombria contra a qual as mulheres brasileiras têm lutado dia após dia. Os dados são de 2021 e foram divulgados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, na véspera do Dia Internacional da Mulher, dia 8 de março. O levantamento mostra que foram mais de 100 mil meninas e mulheres que sofreram violência sexual entre março de 2020 e dezembro de 2021 e que a maioria, 73,7%, tinham menos de 14 anos. Outro dado assustador é que em mais 85% dos casos, o autor é alguém do convívio da vítima.


Mudar a realidade das mulheres faz parte da luta de Terezinha Pereira, Secretária de Políticas Públicas para Mulheres de Maringá. Segundo ela, que está em seu terceiro mandato à frente da pasta no município, o Brasil tem hoje uma das melhores legislações do mundo quando se trata da prevenção e do enfrentamento à violência contra a mulher. Esse status se deve a Lei Maria da Penha que, em 2006, quando foi sancionada, tipificou as formas de violência doméstica. “Até então, no imaginário popular, violência doméstica, era apenas quando a mulher apanhava do marido. Com a lei foram descritas outras quatro formas de violência, além da física: moral, psicológica, sexual e patrimonial”, afirma.


A Lei Maria da Penha foi um avanço grandioso contra a impunidade, já que, por muito tempo, os crimes dessa natureza não eram punidos com rigor, bastava, muitas vezes o pagamento de cesta básica. “O curioso é que às vezes a cesta básica era paga com o dinheiro da própria vítima, que continuava exposta ao agressor, hoje não, bateu, vai preso e vai responder criminalmente por isso”, diz. Outro avanço importante foi a Lei do Feminicídio que fez com que o termo ‘homicídio’ não fosse usado em casos de violência doméstica e violência de gênero. Há ainda o enquadramento como crime por descumprimento de medidas protetivas, a atuação da Polícia Federal nos crimes ocorridos na internet e a violência psicológica passou a ser considerada nos boletins de ocorrência.


“Apesar de termos uma boa legislação, o que preocupa é que na verdade, o país retrocedeu nos últimos anos quando se fala em políticas públicas para as mulheres, que são, o que de fato transformam a realidade. Se o país não tem em seu orçamento recursos para enfrentar a violência contra a mulher e criar equipamentos efetivos de proteção, então esse país vive apenas de legislação punitiva. A legislação é fundamental, mas, é urgente a necessidade de avançarmos em políticas públicas em todas as esferas: municipal, estadual e federal”, afirma.


Desafios

No dia a dia acompanhando a realidade das mulheres que sofrem violência, Terezinha pontua que em muitos municípios elas estão amparadas somente pela lei, mas que muitas vezes o cumprimento da legislação se torna difícil dada à falta de equipamentos na base que deem respaldo às vítimas. “Em outras palavras, temos direitos porque a lei diz que temos, mas não há uma Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), um Centro de Referência, não tem uma equipe multidisciplinar no atendimento, não tem uma Casa Abrigo, Programa de Geração de Renda, IML – Instituto Médico Legal, para fazer o corpo de delito, entre outras necessidades”, lamenta.


Quando se olha para a realidade das mulheres negras, o desafio fica ainda maior. Juliana dos Santos, do Instituto de Mulheres Negras, que leva o nome de Enedina Alves Marques - a primeira mulher graduada em engenharia no estado do Paraná e a primeira engenheira civil negra do Brasil - afirma que os marcadores sociais e o impacto das intersecções aumentam quando se trata deste público e colocam a mulher em maior vulnerabilidade. “Neste contexto é preciso levar em conta as injustiças históricas praticadas contra a população negra e o sistema patriarcal e racista no qual estamos inseridos”, diz. Segundo ela, um dos caminhos a ser percorrido é o de construção de programas de ações afirmativas para a formação universitária e a inserção da mulher negra no mercado de trabalho.


Outro grupo que precisa de atenção especial é o das mulheres lésbicas que, segundo Evelin Cavalini, integrante da ABL (Organização Nacional de Mulheres Lésbicas), sofre um ‘apagamento’ na sociedade. “A mulher lésbica é reduzida a uma verdadeira insignificância. Há o estereótipo de ‘sapatão’, da mulher masculinizada, há o receio de ser acusada de assédio por outras mulheres, a dificuldade no mercado de trabalho e principalmente a violência sofrida dentro de casa”, diz.


Evelin afirma que muitas mulheres lésbicas sofrem o chamado ‘estupro corretivo’, uma forma de violência sexual com a intenção de ‘curar’ a homossexualidade. “O que deixa essa realidade ainda mais sombria é, além do fato de geralmente essa violência partir de homens da própria família, muitas vezes são estupros coletivos sob a justificativa de ‘ensinar a mulher a gostar de homem”, lamenta.


Conselheira Nacional dos Direitos da Mulher junto ao Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Evelin destaca outro desafio na luta das mulheres: a falta de dados que deveriam nortear as ações em todo o território nacional. “O Brasil é um país continental e cada região tem suas particularidades, por exemplo, no Paraná existe prostituição infantil nas estradas, já no Amazonas quem se submete a esta triste realidade são as meninas ribeirinhas, portanto as duas regiões precisam de ações distintas para serem efetivas”, explica.


Referência nacional

Diante da extensão do país e os desafios específicos de cada região, a Secretária de Políticas Públicas para Mulheres de Maringá, afirma que a cidade é uma das poucas do Brasil que dispõe de todos os equipamentos necessários para acolher uma mulher em situação de violência doméstica e intrafamiliar. “Nós temos hoje no município uma Secretaria da Mulher que pode ser comparada com uma secretaria de estado, porque nossa estrutura, nossa equipe e orçamento são muito maiores do que se percebe em estados inteiros”, garante.


Além de uma Delegacia Especializada no Atendimento à Mulher (Deam), a cidade conta com Hospitais de Referência, Promotoria Pública, Patrulha Maria da Penha, Botão do Pânico, Rede de Prevenção e Enfrentamento, Casa Abrigo para mulheres em risco iminente de morte, Programas de Capacitação Profissional, incentivo a inserção no mercado de trabalho e ações de estímulo ao empreendedorismo.


“Digo sem medo de errar: tudo isso foi possível porque em Maringá existe orçamento público para esta finalidade, sem orçamento não existem políticas públicas e não há avanço. Sem investimento, o Brasil continuará sendo um dos países que mais mata mulheres, que mais mata a diversidade, que mais abusa sexualmente de crianças e adolescentes, que assedia sexualmente no trabalho, no transporte coletivo, nas escolas e na política”, afirma.


Atendimento integrado

Outra ação que destaca Maringá em relação a proteção à mulher é o atendimento integrado dos serviços de acolhimento em casos de violência, um trabalho que começou a ser feito a partir de dezembro de 2020, quando a médica ginecologista obstetra, Tatiane Colombari assumiu o serviço de proteção à mulher na 15ª Regional de Saúde. “Quando cheguei ao cargo, percebi que a mulher que sofria violência era exposta a muitos outros constrangimentos para dar sequência à denúncia. Era um processo longo e burocrático, por isso, algumas acabavam desistindo”, lembra.


O caminho para garantir atendimento humanizado foi integrar os serviços. Segundo a médica, antes era preciso que a mulher fosse na delegacia, no IML e no hospital, contasse o fato várias vezes e ainda era submetida a exames, por vezes, desnecessários. “Hoje, quando uma mulher dá entrada no hospital, ela só é examinada inicialmente se for um caso de urgência, se não, ela é examinada uma única vez pelo IML, que vai até o hospital. Enquanto isso, a equipe de Serviço Social colhe as informações e, por e-mail, envia à delegacia para confecção do boletim de ocorrência, ou seja, tudo acontece de forma objetiva e respeitosa”, garante.


O serviço de acolhimento em Maringá é feito por uma equipe multidisciplinar. São médicos, psicólogos e assistentes sociais que estão à disposição para que os encaminhamentos legais ocorram da forma menos traumática possível. Há ainda um acompanhamento à vítima por 180 dias para garantir a segurança física e emocional. “Com a mudança que fizemos no serviço de acolhimento, não temos mais desistências e abandono no tratamento médico e não vitimizamos a mulher mais uma vez, pelo contrário: oferecemos apoio, amparo, informações e segurança”, finaliza.


Movimentos coletivos

A luta das mulheres em Maringá ganha mais força com o surgimento de ONGs - Organizações Não Governamentais e Movimentos da Sociedade Civil Organizada. Uma das iniciativas é a ONG Nenhuma a Menos, que surgiu após o assassinato da bailarina Maria Glória Poltronieri Borges, em janeiro de 2020. Ela sofreu violência sexual e morreu em decorrência de estrangulamento em uma propriedade rural, no município de Mandaguari. “Após o crime, um grupo de mulheres se reuniu para protestar, mas percebemos que era preciso ir além. Além da indignação era preciso partir para a ação”, afirma Evelin Cavalini, cofundadora da ONG. Com a iniciativa, mulheres vítimas de violência têm à disposição auxílio jurídico e acompanhamento psicológico.


O Instituto de Mulheres Negras Enedina Alves Marques atua nas pautas feministas, na questão racial e com a agenda dos direitos humanos. “Trabalhamos com atendimento à mulher e encaminhamentos dentro da rede de assistência social e fazemos campanhas e formações para profissionais de diversas áreas. Todo o trabalho desenvolvido é voluntário e eventualmente recebemos incentivo por parte de organizações e/ou através de editais”, explica Juliana dos Santos.


Em 2020, surgiu também o Movimento Mais Mulheres no Poder. A iniciativa tomou forma na época das eleições municipais para combater a violência política sofrida por mulheres, que são atacadas e desmerecidas no ambiente político, seja na disputa eleitoral no dia a dia ou nas redes sociais. “É muito importante que as mulheres ocupem os espaços de poder e decisão eletivos e que estejam nas Câmaras Municipais, nas prefeituras, nos governos estaduais, na Câmara dos Deputados, Senado, Ministérios e Presidência e, tão importante quanto isso, é que seja feita uma política de estado, não uma política de governo, ou seja, política de estado não pode ser descontinuada, desconstruída. Mesmo que o gestor saia do cargo, a política pública permanece, pois não pode ser temporária”, finaliza Terezinha Pereira.










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