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Homens do comércio

O comércio se modernizou e, principalmente no século XXI, tomou rumos sem precedentes por meio do boom digital, transformações vividas durantes 4 décadas por dois gurus do comércio local: Dayton Gouveia e Jair Morroni, personagens que convidamos para um café e um papo sobre os rumos do comércio de Maringá e região


TEXTO VINÍCIUS LIMA FOTOS RAPAHEL GUIMARÃES


Quando o ser humano fez a primeira troca voluntária de um produto por outro, ali estava nascendo o comércio, uma prática tão antiga que na idade média era considerada uma arte, classificada como “arte mecânica” — práticas e habilidades ordenadas para o desenvolvimento da humanidade. Com o tempo essa prática se modernizou, e passou de uma troca direta de produtos para uma troca indireta com a invenção do dinheiro e, subsequentemente, do crédito, papel-moeda e dinheiro não-físico.


Aqui no século XXI, em uma manhã de terça-feira, próximo do horário de almoço, sentamo-nos em uma mesa do Mercadão Fratello na companhia de Jair Morroni e Dayton Gouveia, amigos de quase 40 anos, unidos pelo ofício do comércio. Enquanto nossa reportagem se preparava para a foto e outros detalhes técnicos da profissão de jornalista, percebo que Dayton já conversava amistosamente com Jair a respeito do livro que está lendo atualmente. “Tô lendo sobre Deng Xiaoping, o cara que construiu a China moderna e fez previsões muito acertadas sobre o crescimento do PIB per capita no país”, comenta Dayton. Qual minha surpresa ao descobrir que Jair leu recentemente o livro de Henrique Constantino, fundador da Gol Linhas Aéreas. “Esse eu vou ler também Jair, não me fala nada do livro!”, brinca Dayton.


Dizem que o livro de cabeceira diz muito sobre a pessoa. Não acho que Jair e Dayton sejam aspirantes a revolucionários globais mas, para mim, sua literatura de interesse sugere serem homens que buscam pensar como os grandes, para serem transformadores em suas esferas regionais.


O último livro lido por Dayton, A alma do novo consumidor, de David Lewis, mostra, segundo ele, um cenário de consumo norte americano que em nada se compara com o tipo de comércio feito aqui no Brasil. “Se eu falar para qualquer americano que eu vendo no carnê e passo cartão de crédito em 12 vezes, eles não acreditam, vão achar que sou louco”, brinca Dayton. Proprietário de mais de 20 lojas Gouveia, entre as cidades de Maringá, Cianorte, Campo Mourão, Arapongas, Rolândia e Londrina, Dayton é aquele típico comerciante brasileiro, que pega cedo no batente e é o último a fechar a loja. Ou, nas palavras de Jair, “aquele comerciante umbigo no balcão”.


Pode-se dizer que Jair se formou nessa mesma escola, tendo em sua carreira passado por diferentes ramos, tanto no B to C quanto no B to B. Hoje administrador de ambos Mercadão de Maringá e Mercadão Fratello, Jair foi proprietário da loja Matrice por 16 anos, se tornou administrador do Shopping Cidade, onde ficou por outros 14 anos antes de entrar para o mercado da gastronomia e entretenimento por meio do Mercadão.


Os frutos de seus trabalhos, hoje visíveis ao olhar público, é uma evidência externa de uma característica interna que ambos, Jair e Dayton, carregam em si: ser um comerciante personalista, aquele ser em extinção que, diferente do investidor que mal aparece no negócio, eles carregam sua empresa por meio de seu tino pessoal próprio, e se tornam a cara e a alma de seus negócios, com um nível de resiliência capaz de atravessar crises, se manter no prumo e não desistir jamais.


A literatura de economia aponta pelo menos 6 grandes recessões econômicas que afetaram o Brasil desde a década de 1980 (quando Jair e Dayton abriram suas primeiras lojas em Maringá) até o dia de hoje, dentre elas a hiperinflação dos 80, a crise da época de Fernando Collor de Mello, a crise financeira global de 2008 iniciada nos EUA, a crise econômica e política que iniciou em 2015 e se arrastou por alguns anos, e, mais recentemente, a crise pela pandemia da Covid-19.


Quando pergunto qual o segredo para se manter no mercado após tantos obstáculos impostos pelo cenário econômico, hora global, hora local, Jair é taxativo: “se a pessoa que abrir uma loja hoje achar que o simples fato de as portas estarem abertas é suficiente, está completamente enganado. Quem faz o cliente entrar na loja não é o consumidor, é o lojista e suas estratégias”.


Dayton garante que viver o comércio é também uma renúncia. “Viagem longa é de uma semana, e a maioria delas à negócio”, fala Dayton para o riso dos presentes. E completa: “O comerciante raiz, como nós, muitas vezes somos o controle de estoque, financeiro, marketing e pós-venda, que escuta o cliente e traz soluções”.


Além das crises e recessões, o comerciante tem outro desafio: as constantes transformações dos padrões de consumo. Imagine que, na década de 1980, só existia telefonia fixa. Com o advento dos celulares, estes ainda assim só tinham a função de fazer e receber chamadas, hoje é um verdadeiro canal de acesso a lojas virtuais de qualquer região do planeta. “Outro fator que muito difere do atual é que antigamente, até mesmo as lojas físicas eram em menor quantidade, as fábricas nos pressionava enquanto lojistas para vender mais e mais… Hoje as fábricas diluíram completamente seu risco distribuindo seus produtos para milhares de lojistas e, além disso, as próprias fábricas vendem diretamente para o consumidor final pela internet”, esclarece Jair.


Dayton se lembra também de outra grande revolução no comércio: a entrada dos cartões de crédito, que para a maioria dos lojistas foi bom, por ter diminuído os índices de inadimplência, mas Dayton enxerga pelo menos um ponto negativo. “Quando o consumidor parcelava através do carnê, ele tinha que voltar todos os meses na loja para fazer o pagamento, e acabava vendo uma novidade e comprando outro produto, com o cartão ele passa uma vez e não precisa mais voltar para a loja”.


Eles são unânimes ao dizer que, de todas as revoluções e de todas as crises, a crise pela pandemia da Covid-19 foi uma das mais significativas, não só pelo período em que o comércio ficou fechado, mas também pelo novo padrão global de consumo que se instaurou no pós-covid, acelerando ainda mais o e-commerce e fazendo a China estar cada vez mais presente na rotina do consumidor final. Diante desse cenário, pergunto se, na opinião deles, o comércio de rua vai acabar. “O comércio nunca acabou, ele existe em todas as culturas há milênios; não acredito que vá acabar, apenas vai se reconfigurar”, diz Jair. Segundo ele, até mesmo as grandes marcas ainda apostam em lojas físicas porque da mesma forma que existe público para o e-commerce, existe uma fatia do mercado que prefere a experiência de sair de casa.


Já ficou claro que, no mundo contemporâneo, é impossível reduzir comércio a empreendimentos de rua. Aquele ser em extinção, o comerciante raiz, que é estratégico, pró-ativo, resiliente e ordenado não está em extinção apenas nas lojas de rua, o mercado carece desse profissional em todas as esferas, em diversas cadeiras e cargos que surgiram junto da vida moderna. Hoje com 71 anos, Dayton diz que a juventude carece de pessoas com veia para o negócio, com ganas de crescer pelo próprio suor. Jair exemplifica: “até mesmo um médico, se não souber fazer seu próprio marketing, vai perder audiência e espaço para o médico que sabe trabalhar com sua imagem e marketing pessoal”.


Se fôssemos traduzir o saldo dessa matéria em uma palavra, talvez esta seja “dinamismo”, uma característica natural do ser humano, a raça com maior capacidade de adaptação no reino animal. Dentre as medidas de enfrentamento à pandemia, Jair concentrou-se em estar muito próximo do seu lojista, tentando orientar sempre que possível e sempre que solicitado, uma atitude que faz parte de sua natureza de cumplicidade com seus parceiros comerciais, motivo pelo qual fez grandes amigos lojistas ao longo de sua carreira no shopping e no mercadão. Dayton, por sua vez, em face do poder de compra cada vez menor da terceira idade, teve a ideia de instalar uma sessão voltada exclusivamente para a terceira idade em todas as suas lojas, com óculos de valor super atraentes.


Ser comerciante é fazer parte de uma das classes mais competitivas e enfrentar as exigências do consumidor diariamente. Realmente ser comerciante é para os fortes, e figuras como Dayton Gouveia e Jair Morroni são um legado vivo de uma postura comercial que a gente aposta até hoje: do olho no olho, e da dedicação ao que faz.





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