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Fazer o bem sem ver a quem

Para ser o ponto final dessa edição, última de 2019, fechamos com chave de ouro narrando a história de Dona Helena e dos muitos anônimos que passam por seus fraternos cuidados


TEXTO VINÍCIUS LIMA FOTO JOÃO PAULO SANTOS

Taís é uma mulher de 28 anos, cachos negros bem definidos, um semblante solene e sempre convicta na fala. Quem a vê não imagina uma vida trilhada por desafios enfrentados já no ventre de sua mãe, na mais tenra idade. Taís é sobrevivente do aborto. “Para mim é muito difícil falar de aborto, porque minha mãe teve essa opção, ela foi convidada por minha avó a fazer o aborto, e hoje sou muito orgulhosa dela por ter fugido e me dado a vida”.


A mãe de Taís tinha 14 anos quando, desamparada, foi encontrada pelo Lar Preservação da Vida, uma ONG que há 36 anos faz um trabalho silencioso, por ser de foro íntimo: valorizar a vida humana através do apoio à mulher na gravidez inesperada, em situação de vulnerabilidade social ou psicológica. A casa já atendeu em regime de abrigo mais de 1862 gestantes e mais de 1123 bebês nasceram com o suporte do lar. A Taís é o bebê número 77, hoje formada em Ciências Contábeis.


Essa corrente do bem foi iniciada por Dona Helena Bressan, fundadora e presidente do lar até hoje, quando uma de suas amigas, brincando, dizia: “me doe um de seus filhos, você tem dois e eu nenhum”. Comovida, Dona Helena se comprometeu a ajudar a amiga a encontrar um filho para adotar, e para isso ela usou o único recurso disponível: a divulgação boca a boca. Não tardou muito e uma mãe carente bateu à sua porta, perguntando se era ela quem estava à procura de um bebê para uma mãe adotiva. Foi assim que ela finalmente conseguiu um filho para sua amiga, mas seu trabalho e seu propósito estava apenas começando.


Os rumores causados pela busca de apenas um bebê foi tão grande que, após aquela primeira mãe, outras continuaram ir ao encontro de Dona Helena, e ela nunca negou o apoio. Por três anos ela ajudou diversas mães de maneira informal, até mesmo em seu próprio lar e no lar de amigos solidários, até o momento em que percebeu que deveria fundar uma instituição que pudesse oferecer um suporte maior a um número crescente de mães em situação de risco social.

Hoje a casa conta com um incentivo do governo que representa até 20% das receitas, e todo o restante dos recursos captados para a manutenção do lar é por meio de doações e do bazar de roupas e brinquedos usadas mantido no mesmo local. “A gente não apoia o erro, a gente apoia a pessoa que errou para que ela se recupere”, é a declaração de Dona Helena e o lema desse lar que já mudou centenas de vidas e de histórias... A história seguinte foi contada em lágrimas por Dona Helena:


Ela estava no bazar quando uma cliente perguntou “como as mães chegam aqui?”. Ao lado de Dona Helena encontrava-se uma mãe que havia há pouco tempo passado pelos cuidados do lar. Respondendo à pergunta, ela disse que quando jovem se tornou mãe solteira de um bebê que morreu de meningite aos 9 meses de vida. Passados 3 anos ela engravidou novamente, mas sua tia, com quem ela morava, disse que ela era um mal exemplo para suas filhas, e que a expulsaria a não ser que ela abortasse. Depois da triste experiência de perder um bebê recém-nascido, ela decidiu dar vida ao novo filho, e foi expulsa de casa. Na ocasião ela morava em um sítio perto de Campo Mourão, e na noite em que foi expulsa passou ao relento, sentada na frente da Igreja. Às 5 horas da manhã, uma mulher que estava indo trabalhar em um frigorífico, tomada pela cena atípica na porta da Igreja, parou e perguntou “por que você está aí?”. Depois de ouvir toda a história, essa ajudante disse “liga para a tia Helena em Maringá”.


O mais comovente dessa história é que de tudo isso Dona Helena sabia apenas que um certo dia, uma certa mãe ligou e ela comprou as passagens de Campo Mourão para Maringá. Os pormenores da história ela descobriu naquele bazar, junto daquela cliente movida pela curiosidade e o interesse em conhecer os bastidores da instituição. “Nós fazemos perguntas práticas para que saibamos como ajudar a mãe desamparada, mas nunca fazemos perguntas de caráter íntimo”, conta dona Helena.


O trabalho do Lar Preservação da Vida já foi criticado por vozes que diziam que as mães assistidas pela instituição estavam sendo incentivadas à prostituição. Em resposta às críticas fugazes, o lar adotou por um tempo a política de abrigar as mães apenas uma vez, sem o direito de retorno por nova gravidez. Até o dia em que dona Helena descobriu que uma mãe em Sarandi havia abortado porque teve vergonha de pedir ajuda ao Lar por uma segunda vez: “depois disso, percebi que se está escrito ‘deveis perdoar setenta vezes sete’ não sou eu quem vou condenar vidas inocentes por erros que não são nem meus, nem deles, mas de mães que têm potencial de se recuperar, mesmo depois de errar tantas vezes”, explica dona Helena.


O apoio à vida, que no lar se traduz também em evitar que mães pratiquem o aborto, está fundamentado no conhecimento adquirido após todos estes anos: uma mãe que doa busca sempre substituir o filho um dia, por outro filho. Já a mãe que aborta carrega para sempre uma dor irrecuperável.


Uma dessas histórias foi revivida por dona Helena em 2013 em uma das confraternizações de reencontro promovidas pelo Lar ao longo dos anos. Em 1993 uma grávida estava no ônibus rumo à fronteira Foz-Paraguai para comprar uma substância abortiva. No meio do percurso uma senhora embarcou no ônibus e sentou-se ao lado dessa grávida. Ao descobrir o motivo de sua viagem, essa senhora, que permanece anônima até hoje, comprou para a jovem mãe uma passagem para Maringá e deu-lhe um telefone, o fixo do Lar. No reencontro de 2013, mãe e filha celebravam juntas, e a vida triunfou mais uma vez.


Voltando à história de Taís, o bebê 77 que hoje é contadora, compreendemos outra ação brilhante desenvolvida pelo Lar Preservação da Vida: o projeto 20 Anos Depois, criado em 2012 com o objetivo localizar as mães e seus filhos nascidos no lar para incentivá-los a retomar ou dar continuidade aos estudos rumos ao ensino superior. Foi assim que Taís recebeu uma ligação na véspera do seu vigésimo aniversário, e ficou surpresa quando, do outro lado da linha, uma senhora se identificou como amiga de sua mãe biológica. “Ela me perguntou o que eu queria para o meu aniversário, e eu disse que meu sonho sempre foi ser contadora. Por meio dela, a ONG financiou meu cursinho até que passei no vestibular da UEM, onde me formei”, explica Taís, que acrescenta ainda: “o meu maior presente talvez tenha sido me aproximar do lar e finalmente compreender melhor o que minha mãe passou e porque ela me pôs para adoção, ao entender pude superar mágoas antigas e até ajudar minhas irmãs a aceitarem com mais gratidão nossa própria história de vida”.


Depois que o filho nasce debaixo do apoio do Lar, o grupo acompanha mãe e recém-nascido envolvendo-os na reconciliação com a família biológica e na busca da autonomia financeira e psicológica. Algumas mães não precisam da ajuda material, mas necessitam de muito amparo psicológico. A mãe se torna forte e corajosa depois que o filho nasce. “Ainda não conheci uma mulher arrependida por ter permitido que seu filho nascesse, mas vi muitas mães chorando por terem impedido seus filhos de nascerem”. Por esse motivo em 2007 teve início o projeto Sim À Vida que visa conscientizar a mulher que vive a experiência da gravidez inesperada, como também a sociedade em geral, para que o aborto não seja descriminalizado e que em nosso país a vida seja valorizada.


Essa causa tem sido cada vez mais impopular nos ciclos sociais e principalmente nos movimentos apoiados pela causa feminista. Sob o argumento de “meu corpo, minhas regras” mulheres têm lutado pela descriminalização do aborto, uma prática que acontece em clínicas clandestinas Brasil afora, todos os dias.

“Um corpo não pode ter dois corações, aquele corpo, embora dentro do seu corpo, não é seu”, contra-argumenta Taís, um bebê que sobreviveu e que hoje une-se ao Lar que um dia permitiu seu nascimento, para defender a vida humana em seu sagrado direto de nascer.



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