Dois nomes que se fazem presentes em nosso patrimônio histórico cultural quando o tema é arquitetura. Não por acaso, também são marido e mulher, pais, filhos, professores e amigos que gentilmente abriram as portas de sua casa para a WIT, revelando um universo delicioso de se estar
TEXTO VINÍCIUS LIMA FOTOS JOÃO PAULO SANTOS
A vida nos leva por caminhos que, muitas vezes, nem podemos sonhar ou sequer imaginar o desfecho. Não creio que o “acaso” tenha poder suficiente para promover um encontro tão perfeito, quando em 1988 Aníbal, já nas cadeiras do primeiro ano do curso de arquitetura da UEL, encantou-se com uma moça do terceiro ano de medicina que resolvera puxar uma disciplina do curso de arquitetura. Oi?
Sim, Tânia saiu de Araçatuba, São Paulo, em sua juventude para cursar medicina na UEL, após passar em um vestibular à época já muito concorrido, o que deixou seus pais extremamente orgulhosos. No terceiro ano do curso, porém, Tânia se deu conta que medicina não era pra ela. “Mas avisar lá em casa que vou desistir do curso simplesmente não era uma opção, então despertei para a arquitetura e comecei puxando disciplinas”, explica Tânia. Em 1989 ela teve que prestar novo vestibular, tornando-se oficialmente caloura de Arquitetura e se formando em 1994.
A formatura de Aníbal aconteceu um ano antes, em 1993. Foi ali no calor da balada, das celebrações e na presença de familiares que eles assumiram um namoro de uma relação que já rolava há 5 anos.
Aníbal é nascido em Maringá, foi parar em Londrina porque por aqui não existia o curso de arquitetura, este foi inaugurado apenas nos anos 2000. Ele conta que, tal como muitos de seus alunos hoje, entrou para o curso de arquitetura sem ter convivido ou mesmo conhecido um arquiteto.
Filho de um habilidoso Alfaiate, Aníbal passou toda sua infância morando em diferentes canteiros de obras. “Meu pai sempre foi uma pessoa muito desprendida, sem dinheiro, ele construiu muito, a gente morava na obra no período de construção e quando ficava pronta ele falava que não tinha grana pra pagar o financiamento, vendia e a gente se mudava pra outra obra”. Com isso, sem saber, Aníbal recebeu uma das primeiras lições da arquitetura: para saber projetar é preciso saber construir.
Aos 15 anos ele teve a experiência de trabalhar na Construtora Ingá, onde aos 17 anos aprendeu, na prática, desenho técnico, dando-se muito bem. Na construtora não havia arquitetos, mas engenheiros civis, que disseram que se ele se formasse em arquitetura, trabalharia fazendo apenas projetos.
Sem um arquiteto por perto, foi na literatura que ele buscou direção. Na biblioteca municipal, à época sediada na Av. Bento Munhoz da Rocha Neto, ele encontrou o livro “O que é arquitetura”, de Carlos Lemos. Por fim prestou vestibular para Engenharia Civil na UEM de Maringá e para Arquitetura na UEL, passando nos dois.
Ainda no período da universidade, Tânia e Aníbal tiveram a chance de conhecer nomes importantíssimos da arquitetura nacional, como Paulo Mendes da Rocha, Sergio Bernardes, Jaime Lerner e Sergio Rodrigues. O mais bacana disso tudo é que estes encontros foram promovidos por eles mesmos, pois tinham uma presença muito ativa no movimento estudantil e na organização de congressos e simpósios. “Hoje eu olho pra esse passado e percebo que éramos movidos pelo impulso da juventude; imagine você pegar uma lista telefônica e ligar para nomes que integram o principal panteão da arquitetura nacional, e convidar para fazer uma palestra em Londrina, e eles vinham!”, relembra Tânia, que se considera ainda hoje uma militante da propagação do conhecimento. Naquela época, sem redes sociais, sem internet e sem telefone celular, ela mobilizou mais de 2 mil alunos para assistir à palestra de Sergio Bernardes. “Hoje, com o advento da internet, o acesso à informações ficou muito facilitado, e isso é maravilhoso, mas percebo que as pessoas carecem de um filtro… É como soltar uma pessoa dentro de uma grande biblioteca. Qual livro pegar?”, diz Aníbal.
A academia sempre permaneceu presente em suas vidas.Tânia dedica-se integralmente à docência na UEM, onde no ano passado teve a honra de receber o título de paraninfa, uma homenagem não apenas dos alunos de arquitetura, mas de todos os alunos da universidade. Aníbal concilia o ofício de professor com os projetos presentes no escritório que fundou em 1996 com sua esposa: Verri e Galvão Arquitetos.
UM NINHO PARTICULAR
Tânia e Aníbal abriram as portas de sua casa para receber nossa reportagem em uma manhã de terça-feira, véspera da viagem de Tânia para São Paulo, onde foi júri na banca do Concurso Público Nacional para a sede do CAU/SP (Conselho de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo). Estávamos sentados na mesa de jantar, conversando e petiscando castanhas de caju quando foi anunciado David Chipperfield como o vencedor do Prêmio Pritzker de Arquitetura, a mais importante honraria do mundo feita para arquitetos vivos. A notícia veio por intermédio da filha Julia, que está em Portugal com sua irmã Alice. Ambas estão cursando arquitetura na Universidade do Porto, através de um intercâmbio com a UEM.
Ao entrar na casa de Tânia e Aníbal fica muito evidente que aquele é um lar concebido por, e habitado por, verdadeiros arquitetos. Totalmente despida de modismos, a casa conserva um ar de elegante autenticidade ao explorar materiais verdadeiros em sua essência: a madeira – ora maciça, ora em lâminas naturais; o vidro; o ferro pesado; e as pedras naturais, estas presentes no arenito vermelho extraído de jazidas paranaenses para revestir toda a lareira, e na ardósia que reveste todo o pavimento social da casa.
Todos estes elementos, assentados com leveza em um projeto que valoriza a entrada abundante de luz e de ar, lançam holofotes para verdadeiros referenciais do design nacional e internacional presente no mobiliário de toda a casa. Le Corbusier, Mies van der Rohe, Charles Eames, Sergio Rodrigues, Alvar Aalto, Lina Bo Bardi e tantos outros.
Localizada na gema da Zona 4 de Maringá, a casa foi originalmente projetada nos fundos do escritório de arquitetura, promovendo uma cultura de menos deslocamento em uma época em que o termo Home Office praticamente não existia. “Nossos amigos falavam que éramos loucos, que os clientes iriam tocar a campainha fora do horário comercial… Mal sabiam eles que um dia existiria o WhatsApp, onde os clientes nos encontram até de madrugada”, brinca Aníbal.
Após se formar em 1994, Tânia mudou-se para Maringá em 1995 e o casamento com Aníbal foi celebrado em 1996. Naquele mesmo ano iniciou o projeto da casa onde vivem até hoje. Eles atribuem ao pai de Aníbal, o senhor Aníbal Verri, a mais significativa alavanca e estímulo de depósito de confiança para que a casa se tornasse possível em incipientes anos de suas carreiras. Como alfaiate, ele tinha o sonho de construir sua casa e seu atelier de alfaiataria integrados. Foi ele quem encontrou o terreno na Zona 4, com 15 metros de testada e 40 metros de profundidade, ao valor de 35 mil dólares. “Vamos rachar?”, propôs ele para o filho e para a nora, que aceitaram de imediato.
A primeira casa projetada e construída foi do pai. A outra metade do terreno foi ocupada gradualmente, segundo os aportes financeiros do jovem casal de arquitetos. “Lembro que nosso primeiro trabalho após a aquisição do terreno nos rendeu 3 mil dólares, e assim fomos construindo aos poucos, começando pelo escritório”, relata Tânia.
No traço da residência é possível distinguir as referências que contaminaram todos os seus projetos de início de carreira: nomes internacionais da arquitetura do século 20. “Todo projeto é uma atividade intelectualizada, portanto nossas referências e inspirações são sempre feitas de maneira muito consciente”, explica Tânia, ao apresentar o vão de ligação do living com o pavimento superior que, segundo ela, é uma característica corbusiana: a integração de espaços verticais.
É incrível se dar conta de que, imerso nesse universo cultural tão rico que vibra em cada detalhe presente na casa, Tânia e Aníbal não tenham nenhum arquiteto precedente em suas famílias. Ela, filha de um dentista e uma costureira. Ele, de um alfaiate e uma funcionária pública. “Com uma costureira e um alfaiate na família, aprendemos a reconhecer uma boa costura e um elegante traje, sabendo que é possível se vestir bem , mesmo sem andar com marcas grifadas por aí”, brinca Tânia, para o riso de todos os presentes.
O fato é que ambos personificam a grande verdade de que, com muito estudo, muita dedicação e amor é possível aprender e se tornar mestre em qualquer ofício. Aníbal estudou o arquiteto Belucci em seu mestrado, paulista que projetou nossa Prefeitura, o Hotel Bandeirantes e nossa Catedral. Já Tânia optou por teorizar Sérgio Rodrigues, e se tornou uma verdadeira amante do design de mobiliário, tendo a honra de não apenas conhecer Sergio pessoalmente, mas de fazer parte do seu convívio em diversas ocasiões. “A humildade de Sergio em receber uma jovem estudante no Rio de Janeiro, me buscar na rodoviária e ainda me hospedar em sua casa me ensinou que os maiores arquitetos são também muito humanos, é uma gente descomplicada, muito profunda e sem empáfia”.
Paulo Mendes da Rocha, outro grande farol da arquitetura brasileira, veio para Maringá duas vezes a convite de Tânia e Aníbal, em 2010 e 2017. “Ele tinha 89 anos quando o buscamos no aeroporto às 9h, e o acompanhamos em uma reunião com o então secretário de cultura do município. Nosso objetivo na época era que ele assinasse o projeto do museu que seria construído no antigo aeroporto de Maringá… Após um dia inteiro de reuniões ele falou ‘vamos dar uma volta? Quero pagar um whisky pra vocês’, então o trouxemos pra casa, convidamos alguns amigos e a Tânia cozinhou um macarrão. Passado tudo isso, paramos pra pensar no quão improvável e surreal foi aquela noite, em que recebemos um Pritzker em nossa casa”, diz Aníbal.
APRENDER SEMPRE
Estando nossa reportagem diante não apenas de dois arquitetos, mas dois professores do curso de arquitetura da UEM, ouso perguntar sobre o porquê de a disciplina de design de interiores ter um espaço tão pequeno na grade curricular do curso. Aníbal é prático ao dizer que os 5 anos de curso ainda não são suficientes para toda a teoria que envolve a arquitetura. Tânia vai mais longe: “arquitetura é um ofício que exige uma consecução materializada. Não dá para desenhar projeto sem saber construir. Na minha opinião estamos em um momento de crise em que se constrói somente a superfície, os revestimentos… Perceba que eu não tenho o menor preconceito com a decoração, eu apenas a vejo como um episódio de certa efemeridade, porque uma casa pode estar decorada para um jantar, um aniversário ou um evento específico, já a arquitetura dos espaços internos vem prover relações espaciais, integrações e compor esse espaço com elementos como luz, vento, cores, materiais, texturas… A população acaba enxergando no arquiteto uma pessoa que ocupa um espaço, não que concebe um espaço, e são coisas totalmente distintas”, explica Tânia.
Vale lembrar que ela mesma, enquanto pesquisadora de Sergio Rodrigues, tornou-se uma verdadeira fã do design de mobiliário, algo muito intrínseco à arquitetura de interiores. O fato é que o bom gosto na composição e arranjo de elementos que compõem a decoração de ambientes internos não é algo que se aprende nas cadeiras de uma universidade, este vem de dentro. “Arquitetura não se ensina, se aprende”, revela Aníbal.
Eles vivem essa verdade em suas vidas até hoje. Tendo recentemente chegado de uma viagem à Portugal, em uma escrivaninha me deparo com uma pilha imensa de livros que trouxeram na bagagem, todos sobre Álvaro Siza, um arquiteto português tão famoso quanto Oscar Niemeyer é para nós.
Aníbal conta com orgulho que esteve presente na ocasião em que Álvaro Siza veio a Maringá. Isso mesmo! Na época ele veio a convite de Oscar Niemeyer, que também se fez presente por ocasião do Congresso Urbe 6, organizado pela prefeitura de Maringá e presidido em pessoa por Oscar Niemeyer. Aníbal relembra aos risos que naquele dia um certo repórter perguntou a Oscar se ele pretendia voltar para Maringá. A resposta foi imprevista e hilária: “Se Deus quiser, nunca mais”. Segundo Aníbal, Oscar, que não viajava de avião, enfrentou uma cansativa viagem de carro do Rio de Janeiro até Maringá. Que dose!







Enfim, estes são Tânia e Aníbal Verri, 27 anos de casamento, outros tantos de arquitetura. “Tu sabias que estaríamos aqui? Depois de tantos anos?”, diz o verso na poesia de Gilmar Leal Santos, escrita para o casal amigo e publicada em seu quinto livro. A resposta à pergunta, é Tânia quem registra: “o amanhã muito me interessa, tenho muito cartãozinho ainda pra queimar”.
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