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MEMÓRIA KALAHARI

Um revival das noites mais quentes que Maringá já provou, dito pela boca daqueles que viveram essa experiência in loco, dos bastidores até os holofotes do palco


TEXTO VINÍCIUS LIMA FOTOS ACERVO DE MANOEL ABRÃO NETTO

Enquanto o mundo se resfriava do apogeu da era disco da década de 1970 para entrar na década considerada pelos críticos como a melhor da história da música, surgia na cena noturna de Maringá uma casa que carrega até hoje o status de a melhor casa noturna e de shows que a cidade já teve.


Além de ter sido a estrela do entretenimento local por mais de duas décadas, a Kalahari fez uma imensa contribuição cultural para a região, promovendo shows com nomes consagrados como Emílio Santiago, Nana Caymmi, Nélson Gonçalves, Fagner, Ronnie Von, Jair Rodrigues, Moacyr Franco, Taiguara, Jessé, Gonzaguinha, Cauby Peixoto, Belchior, Guilherme Arantes, Ivan Lins, Oswaldo Montenegro, Sandra de Sá e tantos outros.


E não foi apenas nas pistas de dança que a década de 1980 trouxe revolução (por causa do surgimento de sintetizadores e baterias eletrônicas, estúdios de gravação tinham acesso a tecnologia mais barata para inventar novas batidas), as incertezas políticas causadas pelo pico da Guerra Fria e o crescimento econômico da classe média mundial fizeram músicos, artistas e empresários se ver diante de novos conceitos criativos, alguns que causavam escândalo.


Foi o que aconteceu quando a Kalahari promoveu um desfile com Roberta Close, a modelo trans mais famosa do país na época. No período de divulgação do evento houve até uma carreata por ruas da cidade, promovida pela igreja local, para manifestar oposião à vinda da modelo. Além de Roberta, a Kalahari promoveu em Maringá trocentos desfiles com verdadeiras vedetes da cena fashion nacional, como Luíza Brunet, Monique Evans, Luma de Oliveira, Kiki Pinheiro, Deise Nunes, Xuxa e também divas locais, como Marceline Almeida, Selma de Oliveira, Jaque Góes, Flavia Marino, Maria Helena Pontes, Sara Culti, Maria Helena Slonpo, Silmar Areas, Cuca, Márcia Angeli, Cau Barone, entre outras.

O sucesso Kalahari foi tão grande que seus sócios fundaram diversos outros empreendimentos Brasil afora em cidades como Londrina, Cuiabá, Goiânia, Brasília, Ribeirão Preto, Santos, Salvador, Recife e João Pessoa.


Tudo começou em 1983 quando os irmãos Manoel Abrão (na época proprietário do bar Baixada Verde) e Paulo Abrão (na época proprietário do Refúgio, que depois se tornou Chaplins Bar) perceberam que as pessoas não tinham para onde ir depois do bar, porque não havia uma boate na cidade. Foi quando eles se associaram ao Eugênio Casagrande e ao Osmar Casavechia para juntos darem vida à emblemática Kalahari.


O primeiro desafio para a concepção desse ousado projeto foi encontrar um local. Uma obra inativa no topo do Cine Teatro Plaza, ao lado da Praça Raposo Tavares, bem no coração da cidade, parecia o ponto ideal. O proprietário do espaço era o José Ferreira Branco, popularmente conhecido como Zé Português, falecido recentemente, em 2019. O Zé era sócio em um frigorífico onde trabalhava um tio dos irmãos Abrão, este tio fez toda a ponte nas negociações que levou o Zé Português a preparar todas as adequações necessárias para que o prédio pudesse receber o projeto da nova boate, incluindo a infraestrutura elétrica, hidráulica e até de elevadores.


A Kalahari foi projetada pela arquiteta Vania e pelo artista plástico Carlos Sato, ambos de Londrina, com assessoria da maringaense Leila Pismel. As obras iniciaram em abril de 1983 e a inauguração aconteceu em 25 de Novembro daquele mesmo ano com um show do cantor Wando e instalações físicas que impressionavam. A boate tinha 3 andares, cada nível com uma programação diferenciada.


O terceiro piso tinha 3 ambientes: um bar, uma pista de música romântica ao vivo e uma pista onde tocava os hits da era disco internacional e pop nacional como Tim Maia, Lulu Santos, Titãs, Os Paralamas do Sucesso, Ultraje a Rigor e por aí vai.

No quarto piso é onde rolavam os shows com venda de ingressos em bilheterias altamente disputadas. Enquanto rolavam as apresentações, que geralmente começavam por volta de 23h, as outras dependências da casa não funcionavam. Ali, debaixo do palco, nas mesas ou nos camarotes aconteceu de tudo e mais um pouco. O publicitário e empresário Hamilton Mariano conta que ele e sua turma ficaram atônitos quando Paulo Ricardo e sua banda RPM, que estava em show na cidade, entraram com tudo no camarote onde ele e seus amigos estavam e simplesmente consumiram toda a barrica de Vodka. “Custou caro, mas a gente achou o máximo”, conta aos risos.


Ainda no quarto piso tocava, nas noites que não havia show, o ritmo pagode e samba, porque o sertanejo não era tão popularmente disseminado como nos dias atuais. E para quem quisesse fugir do barulho, “se pegar” ou simplesmente curtir a vista noturna da cidade havia o quinto piso, ou terraço ao ar livre. As gerações recentes poderiam até dizer que este seria um espaço para os fumantes, mas na verdade a legislação da época não proibia fumar em ambientes fechados, uma prática popular e até cool para a época. Manoel Abrão conta que o cigarro deixava uma névoa permanente no interior da boate e o cheiro ficava tão incrustrado no carpet e nas cortinas que todos os dias após o encerramento das atividades eles deixavam as janelas abertas para dissipar o odor até que a equipe de limpeza chegasse no dia seguinte.


A Kalahari abria nas noites de sexta e de sábado, e começou a abrir nas matinês de domingo para a “rapaziada sub 17” a partir de 1990. Manoel Abrão explica que, por ser a única casa noturna da cidade, muitas pessoas eram frequentadoras assíduas, semana após semana. Por isso, para não deixar as coisas caírem na “mesmice”, os sócios empreenderam inúmeras reformas durante os anos, para atualizar os espaços com reinaugurações nababescas. Grandes nomes da arquitetura assinaram estes projetos de reforma, como Nei Vecchi, Jayme Bernardo (entrevista exclusiva nesta edição na página 44) e Washington Fiuza, arquiteto paulista falecido em 2016.


Quem viveu o período Kalahari, viveu a própria evolução da indústria fonográfica. Tudo era diferente, até o jeito de curtir e levar a vida. Ruth Abrão, esposa de Manoel Abrão, explica que naquela época um percentual muito menor de pessoas saía alcoolizada, se compararmos com as baladas de hoje. “De um modo geral as pessoas daquela época sabiam curtir mais, dentro de tudo o que era lícito para a época”, conta Ruth.


Denizete Ramalho, que foi hostess da casa por alguns anos, lembra que, dentre tantos shows que a casa promovia, o que mais mexia com o público feminino era o Clube das Mulheres, que consistia em um grupo de dançarinos que fizeram fama por meio da novela Corpo e Alma. A Kalahari fechava para o público masculino e só abria para eles depois que o show acabava. “Imagina que na época, em Maringá, sendo uma cidade do interior, causou polêmica”.


Enquanto hoje os champagnes, os vinhos, gins e energéticos imperam nas baladas, na época só se ouvia falar de whisky, cerveja, caipirinha e vodka. A evolução das bebidas acompanharam a evolução dos ritmos. “Mesmo as músicas mais dançantes da época eram possíveis de serem cantadas, em inglês ou português. O jeito de curtir a música hoje é muito diferente, você só pula com a batida, nem sabe o que está dançando”, explica Manoel, saudoso dos velhos tempos.


O empresário Márcio Santos concorda e acredita, de fato, que é um tempo que nunca voltará. “Foi uma época de descobrimentos, e de frequentar uma casa noturna como nunca mais existiu na cidade”.


Outra peculiaridade da época foi também a causa de um dos incidentes mais curiosos dos bastidores da Kalahari. O fato é que não era permitido, na época, entrar na boate de camisa regata e nem mesmo de tênis, tinha que fazer a linha social. Por causa disso um segurança desavisado bloqueou a entrada de um mito da MPB, simplesmente a atração principal da noite. O artista estava usando uma regata de lantejoulas e tinha acabado de ser buscado por Manoel Abrão no hotel Deville. Manoel o instruiu a descer do carro e ir direto para o Camarim (passando pela entrada principal, pois não havia uma entrada secundária para artistas), enquanto ele estacionava o carro na vaga reservada. Mas em questão de segundos a desordem estava instaurada, e levou pelo menos meia hora para o astro se recompor do que ele interpretou como uma ofensa, tendo ameaçado inclusive não fazer mais o show. “Você imagina meu estresse no momento, com a casa lotada e todos os ingressos vendidos, nessa hora eu tive que ser muito diplomático”, diz Manoel mais de 36 anos após o episódio.


Com a modernização da legislação e os avanços técnicos exigidos pelo corpo de bombeiros ficou inviável manter a Kalahari no mesmo endereço, porque o antigo prédio já não comportava as mudanças exigidas. Foi nessa época que a boate ganhou novo endereço, na Avenida Cerro Azul, bem próximo da Catedral de Maringá, quando reinaugurou em 16 de agosto de 1995. No antigo espaço da Praça Raposo Tavares passou a operar, sob a direção dos mesmos sócios, a Amerika Music Hall, uma boate voltada para um público mais jovem. Por este público jovem não ser curtidor do samba e pagode para o qual o quarto andar era dedicado, uma grande reforma foi empreendida, revelando um mezanino onde era o quarto piso. E embaixo de tudo isso, uma grande pista de patinação. Que sensação! Difícil acreditar que, para além das telas de cinema, tinham pessoas que realmente levavam patins para a balada, e dançavam ao som de Donna Summer, sob as luzes ofuscantes de globos de espelho.


Na Cerro Azul a Kalahari permaneceu até 2002, quando se tornou Dot, e esta, por sua vez, encerrou as operações em 2006, deixando um legado de histórias e experiências que a geração dos milênios jamais vai viver.





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